quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sobre a polêmica do livro didático de português...

A discussão sobre o "preconceito linguistico" já está a muito tempo consolidada nas faculdades de letras. Para quem se interessar há o livro "Preconceito Linguístico", que é bem interessante.


BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico – o que é, como se faz. 15 ed. Loyola: São Paulo, 2002

Segue abaixo o texto de João Ubaldo Ribeiro sobre o assunto passado para nós pela direção do PVS:


A língua inglesa nunca teve
academias para formular
gramáticas ofi ciais e certamente
seria afogado no Tâmisa ou no
Hudson o primeiro que se atrevesse
a tentar impor normas de linguagem
estabelecidas pelo governo. Sua ortografi
a, que rejeita acentos e outros
sinais diacríticos, é um caos tão medonho
que Bernard Shaw deixou um
legado para quem a simplifi casse e lhe
emprestasse alguma lógica apreensível
racionalmente, legado esse que nunca
foi reclamado por ninguém e certamente
nunca será, apesar de algumas
tentativas patéticas aqui e ali. Ingleses
e americanos dispõem de excelentes
manuais do uso da língua, baseados
na escrita dos bons escritores e jornalistas
- e, quando um americano quer
esclarecer alguma dúvida gramatical
ou de estilo, usa os manuais de redação
de seus melhores jornais.
A segregação racial nos Estados Unidos
produziu um abismo linguístico
entre a língua falada pelos negros e a
usada pelos brancos. Durante muito
tempo, a língua dos negros foi vista
como uma forma corrompida ou degenerada
da norma culta do inglês
americano. Mas já faz tempo que essa
visão subjetiva e etnocêntrica foi substituída
e o inglês falado pelos negros
passou a ser visto pela ciência linguística
como “black English”, uma língua
perfeitamente estruturada, com
morfologia e sintaxes próprias, com
sua gramática e sua funcionalidade
autônoma, não mais como inglês de
quinta categoria. E essa visão não foi
acatada “de favor” ou para fazer demagogia
com a coletividade negra,
mas porque se tornou inescapável a
existência de uma língua falada por
ela, efi caz na comunicação de informação
e emoção e que prescindia, sem
que isso fi zesse falta, de determinados
recursos do inglês dominante.
Todos nós, com maior ou menor
habilidade, falamos várias línguas,
ou dialetos, dentro da, digamos, língua-
mãe. Falamos língua de criança,
língua chula, língua de solenidade.
Podemos não chegar a falar todas as
muitas línguas à disposição, mas geralmente
as entendemos, como, por
exemplo, quando ouvimos um caipira.
Essas línguas, em padrões de variedade
quase infi nita, são todas legítimas,
não são “erradas”, pois, em rigor,
nenhuma língua que funcione realmente
como tal é “errada”. E, muitas
vezes, ao falarmos “certo”, estamos na
realidade falando inadequadamente,
como um orador que, num comício
no Mer cado de Itaparica, se esbaldasse
em proparoxítonas, polissílabos
e meso - clises. Eu mesmo falo itapariquês
de Mercado razoavelmente bem
e alguns entre vocês, se me ouvissem
lá, talvez tivessem difi culdade em entender
algo que eu dissesse, por exemplo,
a meu amigo Xepa.
Cientifi camente, a neutralidade quanto
a línguas, dialetos ou usos subsiste.
Mas não socialmente, e é isso o que
me parece ainda estar sendo discutido
em torno da propalada aceitação,
pelo MEC, de erros de português.
“Erro de português” é uma expressão
que desagrada ao linguista, porque
ele não vê o fenômeno sob essa ótica.
No entanto, é assim que o enxerga
o público, mesmo o analfabeto, que
aprende pelo ouvido a distinguir o
certo do errado. Isto porque sempre
se entendeu no Brasil que ensinar português
é ensinar a norma culta, que,
durante muito tempo, foi até mesmo
ditada pelos usos de Portugal.
Quer se queira quer não - e há séculos
de formação por trás disso -, a norma
culta é tida como a correta e a única
que representa verdadeiramente nossa
língua. Sua violação é tolerada em
manifestações literárias e artísticas
de modo geral - e, assim mesmo, funciona
mais quando o intuito é obter
efeitos cômicos, ou “folclóricos”, com
essa violação. As pessoas costumam
observar a adesão à norma culta no
que ouvem e leem. Falar e escrever de
acordo com ela é socialmente muito
valorizado e resulta num poder
de que a maioria não se sente boa
detentora e ao qual todos aspiram.
Não é questão linguística, é questão
política. Não se trata de dizer aos
que desconhecem a norma culta que
a fala deles tem a mesma legitimidade,
porque não adianta, não “cola” na
sociedade. Trata-se de ensinar a esse
praticante o pleno domínio da norma
culta, a qual, mesmo tendo que absorver
mudanças, nunca abdicará de sua
hegemonia e é a de que ele vai precisar
para subir na vida.
Advertir contra o preconceito sofrido
por quem “fala errado” também
não adianta nada, diante da força
onipresente da norma culta. (Aliás,
no Brasil estamos sempre à frente e
agora legislamos sobre preconceitos
e tornamos ilegal ter preconceitos,
quando isto é praticamente impossível,
pois o possível é apenas tornar
ilegal a manifestação do preconceito.)
A fala é dos mais importantes recursos
para o que se poderia chamar
de reconhecimento social da pessoa.
Vendo alguém pela primeira vez, fazemos,
conscientemente ou não, um
julgamento automático. Aprontamos
uma fi cha mental, avaliamos a
roupa, a idade, o estado dos dentes
e, inevitavelmente, a fala, através da
qual é frequentemente possível saber
a origem e a extração social de
um interlocutor eventual. A norma
culta, a dominante, a que é ensinada
como correta, mostra sua cara imediatamente
e se refl ete logo na maneira
pela qual o sujeito é percebido e
tratado. Ferreira Gullar tem razão, a
crase não foi feita para humilhar ninguém.
Mas humilha o tempo todo. E
agora, pensando aqui nessa tirania da
norma culta, fi co imaginando se ela
não é empregada com esse fi m, por
certos fi scais dogmáticos. Não devia
ser, porque, afi nal, ela é necessária
para preservar e aprimorar a precisão
da linguagem científi ca e fi losófi ca,
para refi nar a linguagem emocional
e descritiva, para conservar a índole
da língua, sua identidade e, consequentemente,
sua originalidade. Ao
contrário do que entendi de certas
opiniões que li sobre o assunto, a
norma culta não tem nada de elitista,
é ou devia ser patrimônio e orgulho
comuns a todos. Elitismo é deixá-la
ao alcance de poucos, como tem sido
nossa política.
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor

3 comentários:

  1. Com certeza a nossa língua é a que impõe mais regras e por isso acaba sendo uma das mais difíceis de se falar. Quase impossível ter o português impecável na língua.

    Adorei o post!

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  2. O texto de João Ubaldo Ribeiro é bastante pertinente ao tratar sobre o assunto preconceito linguístico, em voga nos últimos dias. Não me valerei do uso de retóricas para me estender sobre tal assunto, que merece um tratamento mais aprofundado, sujeito a um debate amplo de toda a sociedade, de uma forma não tendenciosa a certos grupos ou elites dentro da mesma. Ressalto que é preciso não generalizar, tampouco levar a discussão para uma visão simplista, buscando soluções paliativas, pois tais atitudes, eu diria, são suspeitas e não cheiram bem. De mais a mais, a publicação vale pelo conteúdo.

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  3. Bom, não vou falar sobre o assunto em si, mas da proposta do blog, meu grande amigo Thiago, nosso querido Turista. Acabei de sair do primeiro dia de aula da minha vida muito contente, apesar dos pesares, mas pude travar contato com alunos e percebi o interesse de muitos. E esse blog, com certeza, é um achado, vou indicar aos meus alunos. Obrigado pela iniciativa e um forte abraço, João

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